Aos domingos, quem anda pelo centro de Montevideo tem a grata surpresa de encontrar uma enorme feira de rua, a feira de Tristán Navaja.
De repente, peixes começam a ocupar a calçada. Mas engana-se quem imagina os peixes em bandejas para consumo. Os peixes exibidos eram vivos, e nadavam graciosamente em inúmeros aquários que terminavam por compor um painel insólito ao longo da calçada da avenida 18 de julho, ao lado de outros animais como hamsters, cachorros, pássaros, galinhas e caranguejos.
Ao passar e entrar em contato com os primeiros sinais da feira, dificilmente o pedestre não é tomado pela curiosidade. Logo se segue um desejo irresistível de se deixar levar pelo passeio ao longo dos incontáveis stands e seus simpáticos vendedores, que vão se desdobrando em ruas paralelas e transversais, ocupando uma parte considerável do centro da cidade.
A diversidade dos artigos é a primeira coisa que chama a atenção do pedestre. As barracas que se avizinham oferecem ao passante um impressionante conjunto de artigos que variam dos já mencionados peixes de aquário até cosméticos, de acessórios de couro como carteiras, bolsas e porta-moedas a bibelôs e utilitários para enfeitar a casa, passando roupas novas e usadas, livros, plantas, frutas e toda a sorte de objetos para os mais diferentes fins.
Em determinado momento, a feira começa a mudar um pouco a sua fisionomia. E os stands mais estruturados vão dando lugar a formas mais despojadas de ocupar a rua. Para mim, foi aí que começou a parte mais interessante do evento. Quando a feira vai assumindo características mais híbridas, confundindo-se com um mercado das pulgas.
Quando atentamos para os objetos à venda, vemos artigos que poderíamos, em um primeiro momento, não identificar como mercadorias. Na mesa acima, maçanetas antigas e outras peças de metal que compõem as ferragens de portas são meticulosamente organizadas e colocadas à disposição dos passantes.
A partir daí, entramos em um território em que tudo passa a ser potencialmente um artigo para a venda, o que desafia o nosso modo habitual de encarar um comércio. A disposição dos objetos no chão já são demarcadores desta outra configuração, que vai se conformando à medida em que nos aproximamos dos espaços limítrofes da feira, as suas “franjas”.
As estruturas de metal deixam de existir e o espaço de comercialização de cada feirante passa a ser delimitado por tecidos dispostos no chão. No entanto, engana-se quem acredita que estes tecidos – e seus respectivos espaços comercializáveis – não sejam organizados. Eles seguem não apenas a um estrito ordenamento como engendram uma economia dos pontos de vendas que são anunciados e passados adiante. Na imagem abaixo, vemos apenas caixas delimitando o local circunscrito pelo tecido e um cartaz indicando “Traspasso Lugar”. Em outro ponto, plásticos esticados no chão, sem nenhum objeto por cima, indicam apenas que um espaço de venda na rua está sendo resguardado.
Eletrodomésticos e objetos eletrônicos antigos e aparentemente sem funcionamento se apresentam posicionados estrategicamente no meio da rua. Não fosse a sua arrumação cuidadosa e a calculada distância entre os itens, um visitante desavisado poderia confundi-los com artigos depositados no espaço público para o descarte.
A parte mais encantadora da feira, no entanto, ainda estava por vir. Eu passava absorvendo e tentando operar uma triagem daquela infinidade de estímulos, quando olho para o lado e vejo uma imagem que causa certo espanto, um estranhamento que me faz parar. Reparando melhor, era uma enorme mesa de brinquedos, mas não quaisquer brinquedos. O que me deteve inicialmente foi a visão de cabeças de bonecas sem corpo. Logo ao lado delas, percebi outras partes desarticuladas, pernas, bracinhos, troncos.
A banca de brinquedos antigos impressionava pelo seu colorido vivaz, mas principalmente pela rigorosa classificação e minuciosa organização dos itens. A disposição das peças por tipo, tamanho, cor, demonstrava um absoluto controle do vendedor sobre seus artigos, como a própria forma de trata-los já indicava o status das suas mercadorias. Não, não eram brinquedos velhos cuja única destinação é irem para o lixo, eram peças que não se mais se fabricava, inexistentes no mercado, raridades.
E claro, as crianças não resistiam e paravam, fascinadas por aquele universo infindável que a elas se apresentava a partir de cada pequeno boneco, carrinho, animal, exposto na bancada. A elas, crianças, era um mero detalhe o fato de serem artigos antigos, precisando de reparos ou de segunda mão. Os pequenos sabem, como ninguém, explorar com a imaginação as possibilidades lúdicas oferecidas pelas materialidades.
Talvez esse seja o maior encanto desta feira, e dos mercados de rua, de pulgas, de segunda mão. Nos fornecem a matéria-prima, mas cabe a nós descobrirmos outras vidas para essas coisas, as lógicas residuais guardadas pelos objetos residentes nesse mundo. Cada um deles capaz de abrir uma brecha e revelar a vastidão de um universo novo e até então oculto.